sexta-feira, 10 de dezembro de 2010


Um fanzine levava a outro fanzine e a mais outro e a outro e a outro. E assim por diante. Era desse modo que se tentava mudar o mundo na Bahia da década de 1980. com fanzines. Pelo menos acreditavam seus adolescentes editores - fãs de rock e de histórias em quadrinhos. Não era o único meio de se tentar fazer isso, claro. Havia também o rock em si, a vestimenta punk, importada da Inglaterra ante a falta de uma forma de contestação genuinamente brasileira. O fanzine, porém, trazia mais densidade, de alguma forma, embora o alcance fosse mínimo. Cem, duzentas, trezentas pessoas, no máximo. Isso não importava. No fundo, todos estavam interligados pelos zines em xerox para extravasar idéias, emoções, sensações, pirações.
Para essa turma, era preciso contestar valores
em Salvador, ao som do Camisa de Vênus e Raul Seixas, em especial. E foi essa efervescência que, de algum modo que não me lembro, levou-me a um fanzine chamado "Vilões". Fiquei maravilhado assim que bati os olhos na capa daquela revistinha artesanal, num de seus pontos de venda, a loja "Curinga", da futura atriz Zeca: na cena, irmã Dulce aparecia desesperada, enquanto King Kong escalava o elevador Lacerda com ela numa das mãos. No slogan, a paródia irreverente à boa samaritana: "Ajude irmã Dulce". Genial. Aquele era o cartum que eu queria ter criado.
De algum modo, cheguei ao editor: Carlos
Rezende ou, simplesmente, Rezende. Na verdade, meu primeiro contato se deu com seu irmão, Luiz, também curtidor de rock e quadrinhos. Batemos um papo por telefone e marcamos uma conversa num boteco chamado Moto Lanches, a vinte metros do Terminal Barroquinha e na mesma ruela que dá acesso ao secular Convento da Lapa. Luiz faria o contato com Carlos e o convidaria para o encontro. Depois, vim saber, Carlos era quem segurava a
peteca toda. Luiz fora apenas colaborador de uma única edição de "Vilões", com um texto. Luiz falava de rock, literatura, poesia. Rezende, cartuns e quadrinhos. Este parecia criar compulsivamente, com um traço muito maduro para sua idade - devia ter 18 anos, no máximo.
O Moto Lanches se tornou o ponto de encontro
por mais de um ano, até Luiz se mandar para Curitiba, em 1989. Ali, tivemos longos papos sobre música, literatura e quadrinhos. A cada dia alguém trazia uma novidade ou algo que precisava ser lido ou ouvido. Desse ambiente nasceu a exposição "A
Deformação dos Fatos", que eu, Rezende, Leônidas e DJ apresentamos em junho de 1989, no luxuoso Shopping Iguatemi, o maior da cidade. Foi um escândalo. Detonamos tudo e todos - políticos, classe média, artistas da música baiana - no caso, a axé music. O homenageado era Raul Seixas, que morreria dois meses depois.
O tempo passou e Rezende tomou um rumo na
vida. E eu outro. Ele mandou para as bancas uma revista - "Vilões", mais uma vez - que ainda espera o reconhecimento histórico da mais importante manifestação underground dos quadrinhos baianos. Depois, seguiu os passos do irmão rumo ao Paraná e por lá ficou bastante tempo. Troquei os fanzines pelos jornais. Primeiro em Salvador. Depois, São Paulo. E eis que nos encontramos aqui. Nada parece ter mudado em nós desde o
tempo que deformávamos os fatos mostrados de forma tão certinha em Salvador, naqueles tempos em que a Bahia parecia um terreiro em transe, onde a miséria abria passagem pela delírio da axé music - que ainda não era decantada para os turistas brancos do sul maravilha, puxados e protegidos com cordas por negros pobres, racionados à base de pão, mortadela e ki-suco aguado.
Não morreu em Rezende a irreverência, o
inconformismo de seu humor agressivo, cruel, impiedoso para um estado em que as coisas precisam ser bonitinhas e os amigos estrelas falam bem dos amigos mais estrelas ainda e a vida segue seu rumo. Rezende amadureceu como pessoa, sabe onde quer chegar e continua com o mesmo pique de esboçar projetos.
Nesse aspecto, ele preservou a essência do
cartunista - um vigilante sensível das mazelas, hipocrisias, burrices, jogatinas e rituais de puxa-saquismo que na Bahia Carlista se tornaram uma forma de sobrevivência ou um estilo de vida. Por outro, seu traço evoluiu soberbamente. Além de mestre do traço, Rezende é um fino artista plástico com um potencial perceptível que ainda precisa ser desenvolvido. O que se vê neste site é uma amostra de um
talento múltiplo que não abre mão de ser um vilão na velha Bahia. Sempre alerta com seu pincel. Em guarda! Ânimo, nem tudo está perdido - tento me conformar.e

Gonçalo Junior é gibi-maníaco, jornalista,
roteirista, pesquisador e escritor. Publicou os livros: País da TV (Conrad), A Guerra dos Gibis (Companhia das Letras), Tentação à Italiana (Ópera Gráfica), Claustrofobia - Ilustrado por Júlio Shimamoto (Devir), Tijuana-Bibles - Quadrinhos Sujos (Ópera Graphica), Homem Abril (Ópera Graphica).

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